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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

VAMOS LARGAR AS MULETAS E ANDAR LIVREMENTE PELA ESCRITA!

Por MARCOS - 02/09/2013 às 00:00



Algumas práticas pedagógicas empedernidas são mais resistentes que velhos hábitos e preconceitos sociais. No caso do ensino de português nas nossas escolas, fico espantadíssimo ao descobrir que muitos docentes continuam fazendo recomendações completamente equivocadas a seus alunos no que diz respeito à produção textual. Essas recomendações acabam se fossilizando no inconsciente dos estudantes e se transformando em hábitos petrificados, difíceis de abandonar.

Uma dessas recomendações sem fundamento é a de que não se deve escrever num, numa, nuns, numas e sim “em um”, “em uma”, etc., como se essas contrações, que existem na língua há mais de mil anos, representassem algum erro dos mais cabeludos. Pois não representam: basta abrir qualquer bom escritor, do século XVI até os dias de hoje, para comprovar que essas contrações são perfeitamente naturais, bonitas e elegantes. E sempre me pergunto: por que só proíbem o num e não as outras contrações com a preposição em? Por que também não se ensina a escrever coisas como “em o”, “em a”, “em esse”, “em aquele”? Por que só o pobre do num e sua família sofrem tamanha perseguição? Liberdade para o num!

Outra recomendação que deveria ser extirpada imediatamente é a de que se deve evitar o uso de mas e, no lugar dessa conjunção, usar seus supostos equivalentes porém, contudo, todavia, no entanto, entretanto. Disso resulta uma obsessão no uso de porém, que torna o texto muito mais deselegante, pesado e estridente, enquanto as outras opções ficam mofando. O problema aqui é muito simples: mas é uma conjunção, isto é, um conectivo, uma palavra funcional muito importante para o encadeamento das ideias no texto. Além disso, mas também é a única conjunção adversativa da língua, de modo que seu uso é incontornável, obrigatório e fundamental.

Embora algumas gramáticas e dicionários continuem a dizer que entre as conjunções adversativas se incluem as formas porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto, os estudos contemporâneos rejeitam essa classificação e incluem esses itens na classe dos advérbios. Assim procedem em suas obras gramaticais, por exemplo, Mário Perini, Evanildo Bechara, Maria Helena de Moura Neves, José Carlos de Azeredo, Ataliba de Castilho, além do autor destas linhas. Ao contrário de mas, esses itens, por serem advérbios, admitem uma ampla mobilidade no interior do enunciado. Observe os dois grupos abaixo:

✔Eu tentei te ligar, mas meu telefone ficou sem bateria.
✘ Eu tentei te ligar, meu telefone mas ficou sem bateria.
✘ Eu tentei te ligar, meu telefone ficou mas sem bateria.
✘ Eu tentei te ligar, meu telefone ficou sem bateria mas.



✔Eu tentei te ligar, porém meu telefone ficou sem bateria.
✔Eu tentei te ligar, meu telefone porém ficou sem bateria.
✔Eu tentei te ligar, meu telefone ficou porém sem bateria.
✔Eu tentei te ligar, meu telefone ficou sem bateria porém.

Se substituirmos o porém por outra palavra da mesma classe e com sentido parecido (como infelizmente), veremos que essa palavra se comporta exatamente como um advérbio. Faça o teste  nas frases acima. Além disso, como os demais advérbios, as formas porém, contudo, entretanto e no entanto podem vir antecedidas da conjunção aditiva e, coisa que não ocorre com mas:


E no entanto é preciso cantar,
mais que nunca é preciso cantar,
é preciso cantar e alegrar a cidade...
("Marcha da Quarta-feira de Cinzas", Vinícius de Moraes e Carlos Lyra)



✘E mas é preciso cantar...


A verdadeira conjunção adversativa, portanto, é mas. Num grande acervo de gravações de língua urbana culta falada (o projeto NURC) ela ocorre nada menos do que 523 vezes. Os advérbios que implicam contraste estão praticamente restritos à fala formal e/ou à escrita mais monitorada. No mesmo acervo do NURC, porém ocorre apenas 5 vezes; entretanto, todavia e contudo simplesmente não aparecem, ao passo que no entanto é empregado 6 vezes, 4 das quais por um mesmo falante em situação formal (aula universitária), o que mostra tratar-se de um hábito linguístico individual.

É inadmissível, portanto, a prática que ainda se perpetua entre muitos docentes de aconselhar seus alunos a “evitar a repetição de mas” e substituir mecanicamente a conjunção adversativa por seus supostos “equivalentes” porém, contudo, todavia, no entanto, entretanto... Não existe equivalência alguma: são palavras de classes gramaticais diferentes e, assim, exercem funções sintático-semânticas muito distintas na construção do enunciado. A conjunção mas é um instrumento textual-discursivo indispensável. A produção de textos bem construídos não se limita a evitar repetições nem muito menos a substituir mecanicamente determinadas palavras por outras.

Por fim, e igualmente prejudicial à boa compreensão do funcionamento da língua, é a mania, herdada da escola, de evitar o uso de que e, no lugar dele, empregar o qual. O resultado é um pântano de erros gritantes. Por quê?

O pronome relativo o qual deve ser empregado quando o verbo da oração subordinada é transitivo indireto e seu complemento é recuperado pelo pronome relativo, combinado com a preposição regida pelo verbo:

✔A Índia é um país com o qual o Brasil mantém um intenso comércio.
✔A ponte pela qual passamos ontem foi levada pela enxurrada de hoje.
✔Esses são livros sem os quais meu trabalho não seria possível.
✔O ônibus no qual viajamos era muito desconfortável.



Por isso, é preciso abandonar a prescrição incompleta de “evitar o que” e apresentar aos alunos opções realmente válidas para a construção de seus textos. A ideia de substituir todo e qualquer que por o qual só produz resultados como os seguintes (todos colhidos na internet):

✘Eu aluguei um imóvel o qual fui morar com meus pais já idosos, 62 e 60 anos.
✘Chegamos a um ponto o qual eu nunca imaginei chegar.
✘Kleberson retorna ao Atlético-PR, clube o qual o revelou para o futebol
✘Um fato o qual não posso deixar de registrar!
✘A empresa o qual você está conhece bem o mercado e as estratégias dos concorrentes?
✘Olá! Tive meu nome inscrito no Serasa indevidamente em uma cidade o qual nunca estive.

Os problemas são vários e graves:

Uso errado de o qual como sujeito ou como objeto direto, quando bastaria o simples que: “Kleberson retorna ao Atlético-PR, clube que [sujeito] o revelou para o futebol”; “um fato que [objeto direto] não posso deixar de registrar”.
Ausência da preposição diante do pronome relativo, preposição regida pelo verbo: “Chegamos a um ponto ao qual eu nunca imaginei chegar”.
Falta de concordância de gênero e de número, como se o qual fosse uma palavra invariável, quando de fato se flexiona: “A empresa na qual você está”; “em uma cidade na qual nunca estive”; “pessoas com as quais eu gosto de trabalhar” etc.
Não custa insistir: a maneira mais adequada para abordar esse fenômeno em aula é o recurso a textos autênticos, bem escritos, nos quais ocorra o pronome relativo devidamente empregado, como abaixo:

Limpeza é item com o qual consumidor mais se importa



→ que termo da sentença o qual retoma?
R.: Item.
→ por que se empregou o qual no masculino nessa sentença?
R.: Porque ele retoma item, que é masculino singular.
→ por que antes do pronome aparece com?
R.: por causa do verbo importar-se: quem se importa, se importa com alguma coisa ou alguém.
→ se no lugar de item tivéssemos coisa, como ficaria a sentença?
R.: Limpeza é coisa com a qual consumidor mais se importa.

Um pouco de reflexão linguística simples e fácil ajuda sempre!

O resultado das velhas e descabidas recomendações são textos repletos de “em um”, “porém”, “o qual”, “o mesmo”, “possuir”, “diferenciado” etc. sem, no entanto, o mínimo de coesão lexical, de boa construção sintática, de elegância e simplicidade de estilo. Aliás, essas muletas textuais são os principais sintomas de um texto ruim, empolado e mal escrito. Quando começo a ler um texto e logo aparece alguma delas, já sei que o que vem a seguir não é bom. Vamos então jogar fora essas muletas e tentar caminhar mais livremente pela escrita, sempre com o apoio da boa leitura e da boa reflexão sobre o funcionamento da língua.


Por: Sueilton Junior Braz de Lima
Fonte:
http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/vamos-largar-as-muletas-e-andar-livremente-pela-escrita.html

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