Nesta
semana foi publicado na página Libertária um conto da bolsista efetiva do PIBID
Sidileide Batalha. Libertária é uma página virtual do estado de São Paulo que
partilha poesias, contos e crônicas de escritores renomados de todas as regiões
do Brasil. O conto publicado foi O
cientista. O mesmo conto ficou em segundo lugar no 1º concurso Assuense de
literatura e foi publicado no livro Escrínio
da Literatura Potiguar. O cientista, conta a história do Dr. Rafael, um médico
que julga-se culpado pelo falecimento da esposa e encontra conforto no
trabalho.
Isso é guerra que
mostra o dia a dia de um soldado na segunda guerra mundial é outro conto da
bolsista que foi selecionado após concorrer com alguns contos de escritores da
cidade de Pau dos Ferros para ser publicado na revista e no livro Cruviana da cidade de Mossoró/RN. O
lançamento do livro será no mês de agosto. Você pode conferir abaixo o conto O cientista.
O cientista
Estou
embaixo do chuveiro. As gotas de água batem no meu corpo lentamente. Estou
olhando para os meus pés. Vou até o espelho e penteio o meu cabelo
cuidadosamente para trás. Ligo a torneira da pia e jogo água no meu rosto, ela
se mistura com as lágrimas que não vem. Saio do banheiro e passo pela cozinha.
Por um instante tenho um deslumbre dela segurando uma xícara de café, estou com
pressa e não reparo. Pego minha pasta e ligo o carro. No caminho até o meu
trabalho, olho as árvores, hoje elas estão bastante verdes. “Deve ser
primavera”, pensei. Eu não sei bem em que dia estou, por
que não tenho mais noção de tempo. Observo algumas crianças
brincando no parque. Reparo em um casal
de namorados, eles aparentam serem felizes. Imagino que possuem uma bela
história de amor, que talvez eu parasse para ouvir, se não fosse a pressa do
dia-a-dia.
Chego
ao meu trabalho, não estou atrasado - ao contrário. Nas cadeiras vermelhas ao
lado do corredor, rostos sofridos e esperançosos me aguardam. Passo pela senhorita
Marta.
-
Bom dia Dr. Rafael. – Ela disse cordial.
-
Bom dia Marta- Respondo e continuo meu caminho.
As paredes do hospital são claras,
combinam com as pessoas de branco que circulam por elas. Sento na minha mesa e
rabisco em um pedaço de papel “Vim para
lhe encontrar, dizer que esta tudo bem, dizer que eu preciso de você.” O
meu primeiro paciente entra.
-
Oi Andrew, tudo bem? Sentiu dores esses dias? – Perguntei inclinando-me para
examiná-lo.
A
cabeça sem cabelos do menino de doze anos brilha enquanto o examino. Foi
difícil contar a mãe dele, que o pequeno suportaria apenas mais uns dias de
vida. Mas esse é o meu trabalho. O dia termina lentamente, pela janela do
hospital observo o crepúsculo que se segue. Pego a foto dela da carteira e por
alguns segundos, a observo.
Passava
da meia noite quando a velha poltrona gemeu, então percebi que estava fitando o
teto e sentia um prazer enorme em contar as suas rachaduras. Talvez porque eu
queria que as horas voassem... voassem - aquela era uma forma de distração.
Peguei o papel que havia rabiscado pela manhã e escrevi embaixo “Teu olhar é negro, negro como a noite...”.
Era assim que ela definia os meus olhos.
Eu
estava encostado na parede, conversando com alguns amigos. Foi quando eu a vi
entrando na biblioteca, mexendo em seus cabelos levemente. Entrei logo depois.
Ela estava procurando um livro, me aproximei, mas nada falei, apenas a olhei.
Sentia que já a conhecia, mas como? Se aquela era a primeira vez que a via?
Acordei pela madrugada. “Esse sonho novamente...”.
Levantei da poltrona grogue, tentando manter o equilíbrio. “Café” – precisava
de lucidez. Resolvo fazer um tour pelos corredores do hospital, então começo a
andar com passos curtos e mãos no bolso. “Hoje está tudo tão tranquilo...”,
pensei. Nenhuma cirurgia, nenhum paciente de última hora. Já passei dias e
noites, horas e horas, e por que não dizer anos, nesse lugar, salvando e
perdendo vidas. Odeio confessar isso, mas, há muito tempo minha vida se ressume
a esses corredores.
Sento
um pouco em uma das cadeiras no canto do corredor, e coloco as mãos sobre o
rosto. O silêncio é perturbador, ao ponto de eu apenas ouvir a minha
respiração. Nesse momento volto a minha juventude novamente, ela passou rápido,
e eu nem percebi. Quando resolvo voltar para a minha sala, escuto soluços
vindos do quarto onde o Andrew está. Deitado na cama segurando uma cruz tosca,
Andrew soluçava, enquanto pequenas lágrimas percorriam a sua face, ele rezava
baixinho.
Adentrei
no quarto e sentei no canto da cama. Coloquei a mão sobre a de Andrew. O garoto
ardia em febre.
-
Dr. Rafael é o senhor? – Ele me olhou confuso.
-
Sim, Andrew sou eu. O que esta fazendo? – Perguntei.
-
Estou rezando para Deus... Para que... – Sua voz falhou de repente, suas
expressões faciais contorcidas.
-
Dr. Me ajude, por favor! Não me deixe morrer! – Andrew pediu com sua vozinha
rouca e doída.
Aquelas
palavras me dilaceraram como se estivessem enfiando uma faca no meu peito
lentamente. O rosto do garoto contraia-se
de dor. Saltei da cama e corri aos gritos por minha equipe médica.
A
chuva do mês de julho caía lá fora. Diante de mim, um garoto talvez com poucos
minutos de vida. E pela janela uma tempestade, onde se via os raios e se ouvia
os trovões.
Minha
equipe finalmente chegou ao quarto, todos preparados para mais uma batalha
contra a morte. Os batimentos cardíacos do menino se encontravam fracos no
monitor. Começamos a dá-lhe choques com o desfibrilador. Ele pulava no leito
convulsivamente. Após a sessão de
choques, Andrew soltou a cruz e olhou-me com aqueles olhos grandes de criança.
Forçou um sorriso e virou a cabeça. Seus batimentos viraram uma linha reta no
monitor.
Passei
horas parado diante da janela, olhando as gotas de chuva baterem no chão.
Assistir de perto todo o tratamento daquele menino contra o câncer, e como eu,
ele também morava ali, na casa dos vários cômodos – nosso hospital não era opção dele, mas para mim foi. Uma mão
tocou meu ombro.
-
Dr. Rafael, a mãe do garoto esta na recepção esperando pelo senhor. – Marta
disse tristonha.
-
Obrigado Marta, já estou indo. – Falei baixinho, como se a minha voz pudesse
ferir o meu luto, quebrar o meu silêncio. O meu vazio.
Aquele
era o momento que eu mais odiava na minha profissão: dar a notícia.
Principalmente às mães, ver-lhes o sofrimento misturado a certo nível de
esperança quase desesperado. Os olhos marejados. A dor. A destruição da alma de
alguém. Era a morte chegando ao meu lado.
Esse era momento que eu mais odeio na minha profissão, dá a noticia.
Entrei
na recepção segurando a cruz tosca que estava com Andrew. A senhora de vestido
azul e cabelos negros mesclados elegantemente com
alguns fios brancos, levanta-se e me olha assustada quando me aproximo.
-
Dr. E o meu filho? - Pergunta-me ela com a mão no coração.
Meu
corpo tremia espasmodicamente e minhas mãos estavam geladas. Senti um gosto
amargo na boca.
-
Infelizmente, senhora... O seu filho – engoli seco - não resistiu. Fizemos o
que estava ao nosso alcance – procurei as palavras – Tentamos todos os
procedimentos possíveis... Achávamos que iríamos conseguir reanima-lo com o
desfibrilador, mas... – A minha voz parou no meio da garganta.
-
Então quer dizer que o meu Andrew, Dr... O meu filho... - Sua voz falhou no
final.
O
meu olhar opaco a fez entender. Ambos não queríamos pronunciar a palavra. Senti
arrepios em ondas.
-
Era dele – Tirei do bolso a cruz do menino e entreguei a mãe.
É
impossível saber como será a reação de uma pessoa, diante de uma perda em sua
vida. Mas ela simplesmente enxugou as lágrimas, segurou firme com as mãos a
cruz e pediu que a levássemos para onde estava o seu filho. Penso que há tempos
ela se preparava emocionalmente para esse dia. Acho que quando se sabe que a
morte vem, é um pouco mais fácil aceitar os fatos, as perdas, do que quando ela
chega de supressa. Volto para a minha sala e espero o dia chegar, não falta
muito tempo.
Amanhece
na cidade, o dia está ensolarado, nada parecido com a tempestade de ontem. A
brisa toca levemente as folhas das árvores, e os pássaros cruzam o céu em voos
cruzados. Pego novamente a foto dela que está em cima da minha mesa e a olho.
Lembra-la dói a ponto de me faltar o ar nos pulmões.
Meu
expediente chega ao fim, é hora de descansar. Começo a dirigir. Tudo o que eu
queria era ir para casa, volta para ela, mas eu não posso. Então dirijo até o
cemitério onde ela esta enterrada. Ajoelho-me em frente a sua sepultura, e com
a manga da minha camiseta branca de médico, limpo a foto dela. Faço uma oração
e antes de ir embora, deixo para ela uma flor branca, sua preferida.
Sabe,
hoje eu percebo que são apenas questões da ciência, ciência e progresso. O
progresso nos consome nos faz questionar, questionar quem somos o que queremos
ser. Estamos sempre competindo, em busca de ser o melhor, e nessa trajetória
não vemos o que perdemos, do que desistimos para sermos o primeiro. Eu sou um
cientista, eu estudo vidas, eu salvo vidas. Mas eu não consegui salvá-la, como
tantas outras pessoas. E não consigo estudar a minha própria vida, e é tarde
demais para tentar corrigir os erros. Talvez um dia alguém me leve de volta ao
começo.
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